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Colunista

Planeta tolerável

Leia a coluna de Erick Pereira deste sábado 1º
Erick Pereira
01/06/2024 | 09:18

Dias e dias de inundações, e não restam mais dúvidas: a calamidade que ainda assola o outro Rio Grande não tem precedentes na história do país. Um estado inteiro mergulhado em lama, destroços, doenças infectocontagiosas, violência e, sobretudo, perdas materiais e humanas. Essa, como quase todas as catástrofes ambientais, foi precedida por vários estudos, cujos dados alertavam para os riscos de uma tragédia. E, como quase tudo que diz respeito a emergências climáticas em nosso país e em várias partes do mundo, a prevenção foi preterida ou postergada ao invés de tratada como prioridade pelos governantes.

Os mais vulneráveis são sempre as primeiras vítimas no altar da incompetência e inércia globais. As mudanças climáticas podem causar mais de 90 milhões de mortes no mundo, a cada ano, até o final do século, expondo 360 milhões de pessoas a impactos na saúde, especialmente nos países de baixa e média rendas. Pobres, idosos, mulheres, crianças, indígenas, trabalhadores ao ar livre e com condições médicas pré-existentes correm o maior risco, e as medidas preventivas recomendadas para reduzir o impacto das emergências climáticas na saúde são as de sempre: adotar a redução nas emissões de carbono, sistemas de saúde resilientes ao clima e fundos adequados para proteger a saúde pública das alterações do clima. Uma pena que, contra todas as evidências, o negacionismo persista, um flagelo que se soma às calamidades que, a cada dia, se avolumam e implicam perdas de vidas humanas.

Câmara dos Deputados aprovou decreto que reconhece calamidade no Rio Grande do Sul / Foto: Agência Brasil
Câmara dos Deputados aprovou decreto que reconhece calamidade no Rio Grande do Sul / Foto: Agência Brasil

Talvez não tenhamos percebido, mas a história do mundo está cheia de relatos de gestões que soçobraram em virtude do impacto político do mau gerenciamento de catástrofes. Os primeiros sinais se fazem visíveis a partir de desentendimentos entre os governos municipal, estadual e federal, das disputas inúteis acerca de quem fez mais ou de quem foi menos omisso – ou, simplesmente, de quem se comunicou melhor, desde as operações de resgate e de assistência às pessoas, até o planejamento e a reconstrução das cidades.

O constrangimento que atingiu políticos e gestores, do espectro local ao nacional, deu margem a uma estranha e inútil precocidade na busca por culpados, além de uma previsível onda de lama de fake news, pois ainda vivemos tempos de nefasta e autodestrutiva polarização. As disputas intestinas por protagonismo e oportunismo, inclusive de ações altruístas e de doações, parecem esquecer um aspecto essencial: ouvir a população, a esquecida sociedade civil, quando milhões de razões e de reais estão em jogo. E a voracidade pelo poder desconhece os limites além dos quais os abusos passam a ser naturalizados. É lamentável, mas o crescente apetite de muitos parlamentares por emendas não elege prioridades, a não ser as que dizem respeito a projetos eleitoreiros e outros que não inspiram confiança ou respeito da sociedade. Esquecem-se da grande responsabilidade na representação de um país que tem a maior diversidade do planeta, cujos biomas e populações demandam proteção urgente.

As falhas agridem os intelectos mais simplórios: há uma falta generalizada de medidas estratégicas de adaptação às cada vez mais impactantes mudanças climáticas; omissão em ouvir os nossos especialistas, especialmente os ambientalistas, climatologistas e aqueles que se dedicam ao gerenciamento de desastres; desdém por informações científicas e úteis aos planos de prevenção, independentemente da cor ideológica de quem as produziu. Exemplo: referência mundial em estudos sobre mudanças climáticas, o cientista brasileiro Carlos Nobre, demonizado pelo bolsonarismo, é o mais novo integrante dos Planetary Guardians, grupo seleto de ativistas, ex-políticos e cientistas criado por Richard Branson.

Que as águas do outro Rio Grande baixem logo e a reconstrução das cidades se faça com planejamento urbano de qualidade, de modo que o povo gaúcho não volte a sofrer com outras calamidades. Século e meio atrás, H. D. Thoreau, um filósofo já preocupado com os rumos como tratamos a natureza advertia: “Qual a utilidade de uma casa, se não há um planeta tolerável onde possamos colocá-la?”.

Erick Pereira é professor e advogado

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