Novembro, mês em que se celebra, com a diferença de poucos dias, a Tolerância (dia 16) e a Consciência Negra (dia 20). Algumas datas comemorativas servem mais para nos lembrar que não há muito ou mesmo nada a festejar com relação a certos assuntos. A evocação se impõe pelo aspecto negativo.
Com efeito, quase todos os dias somos abastecidos com acontecimentos que nos provam o quanto a raça humana é resistente às mudanças que tornariam o nosso convívio melhor. Na política, cultura, religião ou nos esportes, deparamo-nos com humanos cuja incapacidade de suportar diferenças é grande o bastante para que escondam seus medos na desumanização do outro e no descarrego insano de intolerâncias, preconceitos, xenofobia, racismo. Lutar contra o sistema de normalização dessas ideias, sentimentos e atitudes hostis é para poucos, pois os louros eventualmente concedidos em reconhecimento são tardios ou sequer alcançam o tempo de vida desses paladinos.
Nove entre dez jornalistas especializados e quase a unanimidade dos torcedores concordam que o atacante Vinícius Jr, do Real Madrid, tinha reunido todos os requisitos para ganhar a Bola de Ouro 2024, o troféu símbolo do melhor jogador do mundo. O vazamento da notícia da derrota do brasileiro fez seu time boicotar a cerimônia em Paris e declarar que “o mundo do futebol não está preparado para aceitar um jogador que luta contra o sistema”, ou seja, contra o racismo. Vini apenas postou: “Eu farei 10x se for preciso. Eles não estão preparados”.
Surpreende que aqueles que se manifestaram pelo acerto da decisão em não premiar o jogador tenham alegado que suas mentiras, exageros, reclamações e provocações constantes em campo constituem “atitudes reprováveis e inadmissíveis”, e que seu comportamento precisaria se pautar por “valores” que decerto somam mais que apenas ganhar e fazer gols. Como ousam? Para quem esses defensores dos “bons valores” lançam justificativas que somente corroboram o racismo? Pois se há um grande traço diferencial positivo quanto ao comportamento de Vini Jr, podemos afirmar que é sua luta contra o racismo.
Como esses defensores gostariam que alguém se defendesse, após ouvir músicas ou gritos de “mono” dirigidos contra si por partes de torcidas e ainda ser responsabilizado por jornais pelos insultos racistas? Que alguém pelo fato de comemorar o gol com o braço direito levantado e o punho cerrado – clara simbologia antirracista – seja ainda chamado de “idiota” provocador? Como alguém que foi alvo de campanhas de ódio online – segundo a própria Polícia, virais e socialmente alarmantes – deveria se comportar face movimentos que incentivam torcedores a usar máscaras para livrá-los da identificação? Alguém que já teve um boneco vestido com a sua camiseta, e com mensagens de ódio contra si e o time, pendurado numa ponte e simulando enforcamento?
Pena que o racismo tisne um esporte que, apesar de sua branca origem bretã, foi catapultado à arte e popularidade graças aos talentos de excepcionais jogadores negros. Voz insistente a denunciar tal crime nos estádios europeus, sobretudo espanhóis, não apenas em autodefesa, mas em defesa de jogadores de outros times mundo afora, Vini Jr começou a colher frutos ainda tímidos, a bem da verdade, de seu inconformismo e de suas reiteradas denúncias. Em junho deste ano, a Justiça espanhola, em sentença inédita, condenou três torcedores a oito meses de prisão por insultos racistas contra o jogador. Em setembro, outro torcedor foi condenado a um ano de prisão pelos mesmos motivos. Há que se reparar para que o homem se culpe e se humanize; para que o homem deixe de ser animal de horda e se transforme em animal gregário.
Por que tanto ódio? Um negro com tamanha autoestima e coragem fascina e intimida; um negro orgulhoso de suas vitórias, insubmisso e altivo, cujo mérito alcançou, a ferro e fogo, a elite do esporte; um negro exigente, provocador – por que não? – e atento a não acatar passivamente sua demonização, o racismo e a violação de seus direitos; alguém que preza e faz jus aos anseios da consciência negra. Se há um troféu a ser ganho por Vini Jr, é por essa admirável persistência inconformada – “10x se for preciso”.
Erick Pereira é professor e advogado