Polêmica reacendida, até quando? De tantas que são as vezes, há muitos que pensam que a questão do aborto tem sido usada para desviar ou mascarar outras disputas travadas nos bastidores do nosso Congresso. Na última quarta-feira, a CCJ da Câmara aprovou a PEC 164 de 2012, que altera o artigo 5º da Constituição para incluir a inviolabilidade do direito à vida “desde a concepção”, possibilitando a proibição do aborto em todos os casos, inclusive os previstos em lei e em qualquer fase gestacional. Neste ano, a nossa obstinada Câmara já havia tentado legislar sobre a questão, em projeto que equipara o aborto realizado após 22 semanas de gestação ao crime de homicídio simples, inclusive nos casos de gravidez resultante de estupro. O texto emperrou após sua repercussão negativa e protestos de vários segmentos da sociedade.
No Brasil, é sempre oportuno repetir, a legislação atual autoriza o aborto em três situações: risco de morte materna, caso de anencefalia fetal e gravidez decorrente de estupro. A mais recente PNA (Pesquisa Nacional de Aborto) mostra que uma em cada sete mulheres, com idade próxima aos 40 anos, já fez pelo menos um aborto no Brasil. Mais da metade do total que abortou pela primeira vez tinha idade de 19 anos ou menos, entre elas meninas de 12 a 14 anos – vítimas de crime de estupro de vulnerável. Muitas tiveram que ser hospitalizadas para finalizar o aborto, com relatos traumáticos da clandestinidade, da insegurança, da convocação da polícia, da perseguição e dos constrangimentos sem fim. São mulheres de todas as idades do ciclo reprodutivo, de todas as religiões, raças, classes sociais, escolaridades e estado civil, espalhadas em todos os recantos do país. Sobretudo, as mais vulneráveis: jovens, negras e indígenas, com menor escolaridade, residentes nas regiões Norte e Nordeste.
Já dispomos de milhões de exemplos de violação dos direitos fundamentais das mulheres – autonomia reprodutiva, direito à saúde e integridade física e psíquica – apenas pela criminalização do aborto. A prática ilegal se transformou em grave problema de saúde pública que a eleva à quinta maior causa de mortalidade materna a atingir especialmente as mulheres mais vulneráveis. Leis restritivas só levam a um aumento dos índices de abortamento, ao passo que a legalização não aponta para o incentivo da prática, pois o aborto sempre encerra uma experiência traumática dissociada de sua escolha como método contraceptivo. Pensar de outra forma é bestializar e desumanizar a mulher.
Ao invés de debatermos políticas públicas de planejamento familiar, a educação sexual e reprodutiva, o acesso a informações sobre os direitos fundamentais das mulheres, a descriminalização do aborto nas doze primeiras semanas de gestação, a prevenção, os cuidados e a dignidade, insistimos na involução, no retrocesso quanto ao rumo trilhado pelas sociedades civilizadas e politicamente responsáveis. Elas já ponderaram que a decisão de abortar decorre do interesse social em prol da qualidade de vida e da dignidade da pessoa, e optaram por leis que repercutem sobre a complexidade causal do problema. Perceberam que posições valorativas de cunho religioso ou ideológico turvam a consciência para o debate ético e para uma das mais graves chagas sociais do nosso tempo, dificultando acordos em torno de questões que envolvem, sobretudo, direitos humanos.
É desolador viver num país em que legisladores defendem a legitimação de formas de violência contra a mulher. Em que manifestantes ainda tenham que gritar o óbvio – “criança não é mãe e estuprador não é pai” – para os nossos surdos representantes na Comissão de Constituição, Justiça e de Cidadania. Deplorável realidade que reflete as diferenças de acesso aos direitos de cidadania e de reconhecimento da mulher como sujeito político e social.
Erick Pereira é professor e advogado