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Artigo

Não somos idiotas

Leia a coluna de Erick Pereira deste sábado 14
Erick Pereira
14/09/2024 | 05:10

Não é de hoje que todo mundo, e desde cedo, mente. A mentira é mecanismo intrínseco às estratégias evolucionárias de sobrevivência e, na dependência das circunstâncias, suas várias faces permitem sua leitura como mal de alto ou baixo risco, necessário ou a ser evitado, pois oponível à moralidade ou ao pacto social. Enfim, um instrumento com muitas tipologias e perspectivas, indissociável da esfera relações humanas, onde se posta a política.

Apesar de sua universalidade, apenas os cautelosos conseguem distinguir mentiras em meio às cada vez mais sofisticadas estratégias de poder. Nos jogos políticos, a tipologia dos mentirosos varia dos “profissionais”, cujas mentiras têm coerência e propósito, até os “habituais”, que as transformam em prática usual e carente de escrúpulos e proporção. Percebe-se, nos dias de hoje, a forma despudorada e habitual com que se mente, com a devida aquiescência da outra parcela de mentirosos menos afoitos.

A cada eleição, alguém se destaca pela façanha de se passar por autêntico, antissistema ou salvador da pátria espoliada, embora muitos percebam se tratar de mais um ilusionista dotado de elasticidade moral suficiente para se adaptar aos desafios que exigem repressão de escrúpulos, sem que sejam desacreditados seus poderes de persuasão e agregação. Exemplo maior é Pablo Marçal, criador de lucrativos produtos digitais e autodenominado futuro candidato à presidência da República. Ao abusar de estratégias de propagação de trechos de seu material por uma rede monetizada de cortadores de vídeos, tem conseguido multiplicar seguidores e angariar a adesão de uma leva de incautos rumo à prefeitura da cidade de São Paulo.

Adepto de um cristianismo mágico, o coach empresário credita sua riqueza a cursos e mentorias que prometem o sucesso mediante uma radical reprogramação neural que modificaria hábitos, crenças e emoções. Ele próprio, apesar dos antecedentes criminais, seria um modelo para seus alunos; um fenômeno dependente das redes sociais e à margem do sistema, abrigado por um partido que sequer tem direito a tempo na propaganda gratuita na TV. Viraliza ao constranger adversários e jornalistas com insinuações infundadas, calúnia, propostas inexequíveis, vínculos indisfarçáveis com a criminalidade organizada, relatos de façanhas mirabolantes. Sabe que a seriedade não engaja ou atrai o público influenciável e apreciador de ações hiperbólicas.

Esses estratagemas de duvidosa moralidade que apelam à superexposição alavancam buscas na internet, a métrica no Instagram e o compartilhamento nas plataformas. Afinal, Pablo está farto de saber que a familiaridade engendra apreço e diminui a vigilância contra as mentiras. Testou seus admiradores quando teve rompante sincericida: em bate-papo num podcast, admitiu que age como um idiota porque essa é a vontade do eleitor. Não, Marçal não é nenhum crédulo na panaceia da lógica empreendedora; o idiota com sanha punitivista que normaliza o absurdo e a antipolítica; um kamikaze insolente na reiteração de ilícitos eleitorais; o narcisista fanfarrão que carnavaliza a política. Desconfia-se que, entre outros talentos, seja um mestre oportunista no manejo de estratagemas de comunicação e na venda de ilusões, persona que captou as carências da parcela do eleitorado que ama os “mitos”, e partiu para a execução dos seus planos ambiciosos, transformando sua influência digital em poder político.

Pior que os cariocas que, 36 anos atrás, depositaram seus votos num chimpanzé – “Tudo pela evolução. Para presidente, macaco Tião!” -, parece que estamos a regredir. Não mais se trata de protesto, mas de fascínio pela involução, pois o que se espera de um candidato, no mínimo, é o respeito às regras do processo eleitoral e o tratamento digno aos eleitores. Não somos idiotas.

Erick Pereira é professor e advogado

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Pablo Marçal é candidato a Prefeitura de São Paulo / Foto: Reprodução

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