Tempo de Olimpíadas é associado a ufanismo, ou à previsível renovação das máscaras da liberdade, da igualdade e da confraternização de culturas e classes sociais. Tempo que, apesar dos desafios do multiculturalismo, deveria ser trégua para desafogar medos, renovar a sensação de pertencimento a grupos e a admiração ao outro, cujos talentos excepcionais e perseverança nos fazem crer numa humanidade melhor.
Mas, com a condescendência de muitos, esse foi também um tempo turvado pela insanidade anônima das massas, em que fronteiras foram ultrapassadas e a capacidade para suportar as diferenças foi sacrificada. A euforia alucinada dos locutores não impediu a percepção do quanto ainda somos primitivos e desumanizados nos limites atávicos das ideias prontas: elas não só alienam, mas servem aos jogos de poder.
O outro que nos fascina ou intimida com suas (des)semelhanças negadas ou ocultadas foi coisificado e hostilizado pelas nossas primeiras impressões, quase todas baseadas na interpretação superficial do mundo a nossa volta. Assim, o mero fato de ter uma aparência dissonante do gênero, ou representar um país cujo governo catalisa a desaprovação da maioria dos povos se transforma em apelo às intolerâncias, preconceitos e medos – Freud e cia produziram uma batelada de explicações para esse fenômeno.
As polêmicas que ainda persistem em torno da inclusão das duas boxeadoras, mulheres cisgênero, a argelina Imane Khelif e a taywanesa Lin Yu-ting – ambas medalhistas de ouro nas suas categorias -, não apenas espelham dificuldades e dilemas suscitados acerca da equidade no esporte, mas demonstram que persistimos a dividir e demonizar o outro, discriminando o valor das vidas envolvidas e desacreditando seus direitos e vitórias.
Para quem desconhece o tema – maioria, admitamos -, mulheres cisgênero com desordem de diferenciação sexual (DDS) podem ter composições cromossômicas diferentes ou simples variações em seus níveis hormonais, características que são apontadas como divergentes da maioria incluída nas definições típicas de feminino. Alvos de ameaças, fake news e discursos de ódio transfóbico sob a falsa imputação de serem mulheres trans, as atletas foram desumanizadas e compreendidas como “homens cisgêneros vestidos de mulher”, a exemplo do que frequentemente sucede com pessoas transfemininas.
Tal questão é polemizada apenas por aqueles que ainda pensam “a mulher” como um ser homogêneo, desconsiderando o fato que todos nós somos seres moldados pelos contextos biológicos, culturais, políticos e sociais, os quais modificam as noções de raça, gênero, classe. A patrulha cisgênera, calcada numa ideologia religiosa, moral ou comportamental, persiste cruel com relação às pessoas não normativas, aquelas cujos corpos, identidades ou expressões rompem com a velha estética padrão e os estereótipos de gênero. Imane e Lin incomodam pela sua estética descompromissada com a apreciação dos outros.
Temos que ter em mente que os fatores que separam vencedores de perdedores são arbitrários do ponto de vista moral, e que sucesso ou fracasso dependem não apenas de força de vontade, mas da imprevisibilidade e irregularidade da sorte, acaso e circunstância. A meritocracia, que pressupõe que nossos talentos moldam nosso destino e trazem recompensas, é passível de contestação quando se percebe que ter determinada aptidão (talentos naturais, dons inatos) é questão de sorte, não de uma ação; é também questão de se viver numa sociedade que premia determinados talentos em detrimento de outros. Afinal, o que seria de LeBron James se tivesse nascido baixinho nos EUA, ou alto em Uganda, ou com qualquer estatura no antigo Egito? Sucesso é amálgama de contexto, esforço, sorte, talento, dons inatos e as vantagens competitivas que deles decorrem.
Imane e Lin mereceram suas medalhas. Foram recompensadas pelos caprichos da natureza, mistérios do destino? Em parte, talvez sim, mas, sobretudo, por seus esforços e persistência, inclusive na sofrida luta contra o preconceito. Uma luta que, lamentavelmente, enfrenta, no lado oposto do ringue, pesos pesados como Trump, Musk e J. K. Rowling.
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