Dezembro é tempo de paradoxos, lições, enganos e autoenganos. O último mês do ano contém simbolismo peculiar, espécie de trégua pela celebração do nascimento de Cristo, quando nos condescendemos em seguir os ritmos que reverenciam preceitos e dogmas cristãos. Sequer atentamos que a data do nascimento de Jesus é desconhecida, exceto para uns historiadores que a calculam como tendo ocorrido entre março e abril, aspecto que hoje não tem a menor relevância pois, nos idos do século IV, o Papa Júlio I fixou a data em 25 de dezembro e o dia virou tradição como uma das principais festas da Igreja Católica.
Mas a forma como reverenciamos essa tradição tem sofrido mudanças, pois mais e mais nos aproximamos dos festejos da Saturnália, festival romano que celebrava o “renascimento do ano”, coincidindo o solstício de inverno no Hemisfério Norte com o 25 de dezembro. Para satisfazer o deus do tempo e da abundância, presentes eram trocados e as casas enfeitadas. Hoje, congraçamo-nos freneticamente, lotamos bares, cafés e restaurantes em meio às luzes e enfeites natalinos. Negamos o caráter efêmero do consumismo e das celebrações apressadas à guisa de reencontros, assim como da solidariedade de ocasião que mais serve para aquietar consciências.
Seja como for, há quem pense que ainda podemos reavivar o Natal e recuperar o seu real significado que, à luz da fé, remete à confiança numa narrativa que subsiste há mais de dois milênios e persiste a inspirar aqueles que desejam paz e bons afetos às pessoas de boa vontade. Céticos, agnósticos, ateus, pessimistas ou simplesmente nostálgicos, sob efeito ou não do autoengano, concordamos que a época é propícia para uma trégua esperançosa que tem a força de reacender os bons instintos da nossa humana natureza, ainda que seja por uma questão de utilidade e conveniência para o próprio bem-estar e sobrevivência. Se a sociedade transcende um acordo entre indivíduos conflitantes, o estímulo aos instintos de cooperação e solidariedade é imprescindível. Já temos em demasia aqueles que favorecem o comportamento egoísta e antissocial.
Há diversos incentivos para prosperar o otimismo, a esperança, a compaixão e o altruísmo, enfim, proteger-nos de nós mesmos. E como as expectativas influenciam quase tudo na vida e se infiltram nas nossas escolhas relativas – as absolutas são raríssimas – e reforçam nossas humanas convicções, não custa que as exercitemos. Nas esquinas, canteiros e cruzamentos reais, por que não dirigir o olhar, quiçá compadecer-se daqueles humanos pedintes, maltrapilhos, necessitados, cujas existências presumimos malogradas? Posturas e semblantes apáticos, agressivos, desalentados ou tragicômicos, alguns em corpos de idade incerta ou gênero indefinido, desafiam a indiferença imersa num cotidiano alheado. Alguns são fregueses das sopas e caravanas solidárias semanais. Uns se foram, nunca mais foram vistos – por onde anda aquele velhinho falante, cuja alegria desproposital tinha a mágica de contagiar a indiferença? E o cadeirante que desafiava a alternância do semáforo e o aclive da Dionísio Filgueira? Outros surgem, como o jovem de orelhas enormes e olhar aflito, a mulher trans com aspecto e adereços de menina, o moço agressivo que bate no retrovisor diante das negativas. Outros justificam sua mendicidade em cartazes singelos em que resumem suas urgências e, por vezes, pedem emprego, mensagem quase sempre concluída com “Deus abençoe”.
Há quem nesses seres enxergue o trapaceiro, o fracassado, consumido pela vida ou até mesmo o Cristo. Sei apenas que transmitem lições de realidade a quem se dispõe a sentir e a pensar – a paz social, longínqua, está a implorar compromissos duradouros com a humanidade e com a solidariedade do espírito natalino a se fazer presente em todos os dias do ano. Paz na terra aos homens e mulheres de boa vontade. Deus os abençoe.
Erick Pereira é professor e advogado
