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Coluna

Etarismo

Leia a coluna de Erick Pereira deste sábado 6
Erick Pereira
06/07/2024 | 10:56

As agruras da velhice, especialmente o declínio cognitivo, estão no foco panóptico global. Em destaque, líderes mundiais com mais de 70 anos de idade têm seus gestos, falas, gafes e lapsos escrutinados por meios de comunicação, a maioria imbuídos das melhores intenções de acompanhar e propalar as ações públicas dos grandes expoentes da política. Afinal, para os cidadãos das democracias representativas, visibilidade e transparência são elementos essenciais que extrapolam os processos decisórios e, sobretudo em tempo de redes sociais e hipervalorização da imagem, englobam aspectos corriqueiros de solenidades e ritos.

Mas, como nas lutas pelo poder “o que importa é o êxito bom ou mau”, há adversários que, por obra e graça da IA e dos tratamentos de imagem, inundam as redes sociais de fakes e meias verdades, de modo que somos capturados pelo efeito manada e temos as convicções abaladas. Os protagonistas são assim expostos a críticas e ridicularizações, colocados em situação de grande vulnerabilidade perante os cidadãos. Isso ocorre, em dimensão maior, com o presidente Biden, mas nem Lula e outros que estão ou se aproximam da oitava década de vida se safam das pressões e intimidações verbais associadas ao etarismo.

Presidente norte-americano Joe Biden / Foto: reprodução
Presidente norte-americano Joe Biden / Foto: reprodução

Biden, 81, especialmente após o primeiro debate presidencial deste ano, teve reforçadas contra si as suspeitas de deterioração das funções mentais, após uma performance considerada “vacilante” e marcada pelos lapsos de memória e a voz rouca. A imagem pesou mais que a falta de urbanidade e o rosário de mentiras do adversário. E ele próprio admitiu que não anda tão bem, não fala tão bem, nem debate tão bem quanto antes, mas sabe “como falar a verdade” e fazer o trabalho ao qual se propõe.

Após uma série de vídeos já provados como manipulados ou retirados do contexto, gostei de assistir ao completo em que Biden se vira para o lado oposto ao do presidente Macron, para saudar os veteranos de guerra que estavam atrás das autoridades, assim que o Last Post, conhecido toque militar, se fez soar. Ganhou algumas continências, além do respeito dos velhos e bravos guerreiros.

Embora duvidar da capacidade cognitiva dos velhos possa parecer natural a quem não é velho, surpreende que o etarismo prospere em um tempo em que o envelhecimento é uma tendência global, em que um bebê nascido hoje pode esperar viver em média 25 anos a mais que um recém-nascido de 1950. Não é apenas a expectativa de vida que vem subindo – segundo a ONU, o número de pessoas com mais de 65 anos deve dobrar até 2050, passando de quase 800 milhões para 1,6 bilhão.

Longevidade não implica, isoladamente, melhor qualidade de vida. Tal premissa é adotada por países que investem nas dimensões do desenvolvimento humano e pensam o povo como a maior riqueza de uma nação. É tenebroso um prolongado envelhecer com aposentadoria e pensão aviltadas por um custo de vida com predileção sádica pelos velhos. Estes pagam mais caro para sobreviver, o que exige dos governos mais recursos para manter aqueles que estão parando de trabalhar – a expectativa de vida cresce, mas vive-se mais tempo doente. Aos gastos com doenças, outros se somam ou sequer podem se somar. Os seguros e planos de saúde são termômetros das doenças incapacitantes que precocemente se instalam na velhice – muitos recusam contratos razoáveis com pessoas com mais de 59 anos. Em que pese as doenças, os percalços, a falta de resignação, a degradação dos reflexos e sentidos, o abandono e os maus-tratos, a maioria dos velhos concorda que há de se bem levar adiante os anos que restam. Tal fenômeno alerta para a necessidade de investimentos e políticas públicas para atender um mundo em envelhecimento e que almeja um futuro sustentável, no qual os direitos e o bem-estar dos idosos são metas imprescindíveis.

A arte de bem adentrar no inverno da vida parece exigir autenticidade e adaptação prosperadas na vivência dos anos, daí a autoridade do velho para contrariar os que se julgam no monopólio da experiência. Cícero, em seu tratado sobre a velhice, observou que os que negam à velhice a capacidade de tomar parte dos assuntos públicos não provam nada. “Em verdade, se a velhice não está incumbida das mesmas tarefas que a juventude, seguramente ela faz mais e melhor. Não são nem a força, nem a agilidade física, nem a rapidez que autorizam as grandes façanhas; são outras qualidades, como a sabedoria, a clareza, o discernimento”. Não é por acaso que os antigos romanos denominavam o conselho supremo da República de Senátus, ou seja, a “assembleia dos anciãos”.

Com sorte, os jovens se tornarão idosos produtivos que manterão ascendência sobre os seus. Pois não é disso também que trata a vida? Um tempo de agregar conhecimentos, transmiti-los, reinventar ou redescobrir sentidos, transpor obstáculos, cultuar memórias e bons afetos, produzir e ser útil, ainda.

Erick Pereira é professor e advogado

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