Penso que nunca é demais falarmos/lutarmos contra a discriminação e os preconceitos. Admitamos que é muito difícil lutar contra juízos hostis e recalcitrantes que nos têm sido incutidos ao longo de séculos. Março é mês oportuno para voltarmos ao tema o dia 14 marca o nascimento de Carolina Maria de Jesus e o assassinato de Marielle Franco, e 21 é o Dia Internacional contra a discriminação racial.
O conceito de discriminação, de tão amplo – qualquer com- portamento ou fala de restrição, exclusão ou preferência por determinada raça, cor, ascendência ou nacionalidade –, tem sido substituído por “racismo” que, entre nós, remete sobretudo aos africanos e seus descendentes, pretos e pardos, embora estejamos a presenciar o recrudescimento do antissemitismo. Cada racismo faz suas vítimas a sua maneira. O amplo conhecimento das tristes razões históricas não impede que nossas manifestações de racismo se restrinjam aos atos violentos ou de hostilidade pública. Tal fenômeno é tão estruturado e estruturante que suas manifestações se infiltram na linguagem, nas ações cotidianas, em rótulos e estereótipos preconceituosos.

Persistimos a confundir mitos com realidade. A miscigenação das raças nunca foi símbolo da identidade nacional. Na terra dos homens e mulheres “cordiais” cultivamos o sorrateiro hábito de matarmos pelo silêncio, pelo não dito, pela ambiguidade de ações e opiniões, pela negação dos débitos sociais e até da própria cor. E o racismo, empoderado pela fal- ta de referenciais, assim se alastra por todos os escaninhos da formação da cidadania – desde o seu início no lar até a educação, a moradia, as defasagens salariais e as oportunidades precárias de trabalho, a difícil ou frustrante ascensão social manipulada pelos esquemas de poder.
As estatísticas são por demais conhecidas, ano após ano – da vida carcerária desumanizada até as vidas muito tenras abreviadas, do desemprego ao trabalho análogo ao escravo todos sabemos quem delas mais padece. Aqueles que desde cedo sofrem deste preconceito nada gentil também aprendem: a invisibilidade, a submissão, a condescendência para com os agressores, e até a própria culpa. Quando uma pessoa negra eventualmente ascende à elite da sociedade, questiona os próprios méritos. Afinal, foram tantos e árduos os obstácu- los que, ao invés do topo da pirâmide, símbolo da ascensão, ela persiste a enxergar um círculo, tal como uma roda de Candomblé em que se dança para evocar os Orixás.
Desprezamos o que não conseguimos entender. É o outro, sempre o outro quem promove conflitos, quem porta bandeiras ideológicas incômodas, quem cultiva a dependência, quem é agressivo ou indolente, quem é feio, quem é inferior. Fechamos os olhos para os processos históricos e os indicadores sociais e econômicos, racionalizamos e mascaramos a morte social de enorme parcela da população. E ainda criticamos quando um Presidente promove políticas públicas de inclusão e materializa seu pensamento mediante escolhas de pessoas pretas e indígenas como protagonistas de ações polí- ticas. São pactos civilizatórios.
A questionável Lei Áurea e a Constituição cidadã não conseguiram coibir as diferenças abissais e a barbárie silenciada e entranhada na nossa sociedade. A propósito, 25 de março é celebrado como Dia Nacional da Constituição – em 1824, Dom Pedro I impôs a primeira das nossas sete Constituições, 64 anos antes da assinatura da Lei Áurea.
Em 1889, um grupo de escravos libertos e preocupados com a sina dos seus descendentes redigiu uma carta para Rui Barbosa, na qual destacamos: “Nossos filhos jazem imersos em profundas trevas. É preciso esclarecê-los e guiá-los por meio da instrução”. Passados 135 anos, as trevas não são ape- nas aquelas da precária instrução. Nas favelas e periferias, mães pretas insones “instruem” estratégias de sobrevivência aos filhos para que não sejam confundidos com bandidos e morram. O martírio atávico das pessoas negras persiste. Sua resistência, felizmente, também.