Imagine dormir e acordar no dia seguinte transformado em um inseto gigante. Imaginou? Parece absurdo, não é? Façamos outro exercício. Você está em casa, assiste a um vídeo na rede social de um político em defesa inflamada de uma ideia, aplaude o posicionamento e vai dormir. Na manhã seguinte, ele está filiado a outra legenda que defende o oposto do pensamento que fez você bater palmas na noite anterior. Que te parece?
Franz Kafka, escritor tcheco, é o dono da ideia de um personagem que vivia apenas para o trabalho mantenedor de sua família e que se vê transformado em inseto gigante. A narrativa de “A Metamorfose”, publicado em 1915, é uma hipérbole da existência humana e uma reflexão sobre identidade capaz de ser aplicada ao permanente movimento, na forma e no conteúdo, de parte dos representantes públicos e de políticos brasileiros.
O protagonista Gregor Samsa é a metáfora literária de muitos agentes públicos que, por receio de verem seus mandatos ameaçados no futuro, saltam pela primeira janela partidária aberta para manutenção de seu próprio status quo. Em Natal, por exemplo, ao menos 13 vereadores, do total de 29, devem ter novo destino antes das eleições de 2024. Mudanças já realizadas, sinalizadas ou especuladas. Há pré-candidato à Prefeitura do Natal que mudou não apenas de partido, mas também saltou de um extremo ideológico a outro, situações que dificilmente aconteceriam sob a ordem natural das coisas se preservada uma lógica não-egocêntrica.
Episódios como os citados acima são recorrentes, especialmente, depois da criação formal da janela partidária na reforma eleitoral de 2015. O período está previsto na Lei dos Partidos Políticos (Lei nº 9.096/95) e beneficia candidatos eleitos em pleitos proporcionais (vereadores, deputados estaduais, federais e distritais) e que estão em fim de mandato em todo o país. Obviamente, a defesa não é pela fidelidade irrevogável, mas pela coerência nas mudanças.
A janela partidária, criada com o objetivo de criar uma fidelidade, apenas formalizou o “pula-pula” entre partidos. Atualmente, no país, são 29 legendas. Em sua imensa maioria, partidos com construções programáticas genéricas, sem representatividade expressiva, loteados por grupos específico e que servem apenas à barganha. Ninhos para os insetos gigantes metafóricos “passarem uma chuva”.
Eis que nos deparamos com um paradoxo: se por um lado a solução é uma reforma política que reduza partidos e crie travas reais para negociatas de apoios lá e cá, são justamente aqueles beneficiados pelas brechas na cerca os que tem o poder para realizar as reformas estruturais no sistema político brasileiro. Até aqui, poucos mostram interesse em transformar o que, de fato, importa. E diferente do fim da história fantástica “kafkiana”, quem perece são os outros. O inseto gigante continua vivo, forte, feliz e saltitante pela liberdade de saltar como quer e bem entende.