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Jaqueline Almeida

Quando até briga de vizinho vira guerra ideológica

Confira a coluna de Jaqueline Almeida deste sábado 4
Jaqueline Almeida
04/10/2025 | 05:06

Nos últimos anos, a polarização política transformou-se em um filtro onipresente: qualquer fato, por mais trivial que seja, é imediatamente traduzido em termos de “direita” e “esquerda”. Não importa se se trata de um debate econômico de grande porte, de um caso criminal de repercussão nacional ou de uma simples briga de vizinhos: logo surgem vozes classificando os lados como “lulistas” ou “bolsonaristas”, como se não houvesse espaço para interpretar a realidade fora dessa régua binária.

Essa dinâmica não é apenas cansativa — ela empobrece o debate público. Ao enquadrar todos os acontecimentos como reflexo de uma disputa ideológica, perde-se a capacidade de enxergar nuances. Uma discussão sobre política tributária, por exemplo, transforma-se em uma caricatura de “Estado inchado versus Estado mínimo”. Um caso policial rapidamente é reduzido à pergunta “adivinha em quem o delinquente votou?”, um argumento simplista e generalizante. O absurdo não está no fato em si, mas na interpretação enviesada que as pessoas constroem para reforçar suas crenças.

Quando até briga de vizinho vira guerra ideológica
Quando até briga de vizinho vira guerra ideológica - Foto: Freepik

O problema é que esse enquadramento ideológico permanente funciona como cortina de fumaça. Ao reduzir todo acontecimento a uma disputa entre campos políticos, evitamos enfrentar as questões reais. Se o foco é apenas “quem ganha pontos contra o adversário”, já não importa discutir soluções, políticas públicas ou até mesmo valores universais como justiça, convivência e solidariedade. A polarização transforma a realidade em um espetáculo de torcida, em que o mais importante não é compreender, mas apenas “vencer”.

É claro que a política permeia nossas vidas e, muitas vezes, ajuda a explicar conflitos sociais, desigualdades e escolhas coletivas. Mas há uma diferença entre reconhecer a dimensão política de um fato e aprisionar cada detalhe da vida cotidiana em um maniqueísmo raso — como se entre o preto e o branco não existissem tons de cinza. O excesso de etiquetas ideológicas revela, no fundo, uma sociedade fragilizada, que busca certezas rápidas para problemas complexos. Ao classificar tudo como “direita” ou “esquerda”, as pessoas abrem mão da análise crítica e se refugiam em slogans.

Se quisermos amadurecer como sociedade, precisamos recuperar a capacidade de dialogar criticamente fora dos rótulos. Nem toda briga é sobre capitalismo versus socialismo. Nem todo erro de governo é prova de complô ideológico. E, certamente, nem toda notícia precisa se tornar munição na guerra cultural. A política é parte da vida, mas a vida é maior do que a política.