05/07/2021 | 16:26
Três dias após o surgimento de um caso raro de Covid-19 em Sydney, 34 amigos se reuniram para uma festa de aniversário. Em meio a comilança e risadas, havia uma ameaça oculta: um dos convidados, sem saber, cruzou o caminho daquele caso único de coronavírus, um motorista de aeroporto que havia contraído a variante Delta de uma tripulação americana.
Duas semanas depois, 27 pessoas que estavam na festa tiveram resultado positivo para Covid-19, incluindo uma criança de 2 anos, além de 14 contatos próximos. As outras sete pessoas que não foram infectadas haviam sido vacinadas.
Essa festa de aniversário é o retrato do imenso desafio que a Austrália enfrenta agora com sua política de erradicação total da Covid. Como poucos australianos foram imunizados nos subúrbios mais simples do país, a variante Delta, altamente contagiosa, se espalhou.
Para a Austrália e todas as outras nações que buscam uma abordagem chamada “Covid zero”, incluindo China e Nova Zelândia, a festa de aniversário no oeste de Sydney equivale a um aviso: sem uma campanha de vacinação em massa, essa política não pode resistir sem restrições cada vez mais dolorosas.
— Este é o começo do fim da “Covid zero” — disse Catherine Bennett, diretora de epidemiologia da Universidade Deakin em Melbourne. — Podemos conseguir controlá-la desta vez, mas vai ser cada vez mais difícil.
A mutação Delta já se espalhou de Sydney para toda a Austrália, transportada em voos e por pessoas que visitam escolas, hospitais, cabeleireiros e um centro de vacinação em massa. Metade dos 25 milhões de habitantes do país receberam ordens de ficar em casa, já que o número de casos aumenta diariamente, com uma média móvel em torno de 40 novos casos por dia. As fronteiras dos estados estão fechadas e a exasperação — outro bloqueio 16 meses após o início da pandemia? — está se intensificando.
É uma mudança repentina em um país que passou a maior parte do ano passado comemorando uma conquista notável. Com fronteiras fechadas, testes generalizados e rastreamento eficiente, a Austrália reprimiu todos os surtos anteriores, mesmo que quase todos os outros países tenham vivido com a presença incessante do vírus, muitas vezes de forma catastrófica.













Na Austrália, ninguém morreu de Covid-19 em todo o ano de 2021. Enquanto Nova York e Londres se protegeram no ano passado de um ataque viral, Sydney e a maior parte do país desfrutaram de estádios, restaurantes, salas de aula e teatros cheios.
Essa experiência de normalidade — diminuída apenas pela falta de viagens ao exterior, ordens ocasionais de uso de máscaras e quarentenas instantâneas — é o que os políticos australianos, do primeiro-ministro Scott Morrison às autoridades locais, estão tão desesperados para defender. Para eles, manter a “Covid zero”, custe o que custar, continua sendo uma política vencedora.
Na sexta-feira, a Austrália dobrou sua aposta, anunciando que as poucas milhares de chegadas internacionais que foram permitidas semanalmente seriam reduzidas pela metade. A variante Delta forçou as autoridades a agirem com mais rapidez e firmeza com restrições do que antes. O estado de Nova Gales do Sul evitou uma quarentena total durante os surtos anteriores da Covid. Desta vez, Gladys Berejiklian, a premier estadual, tentou uma tática semelhante, mas descobriu que a Delta agia rápido demais para ser contida.
A variante Delta, que foi encontrada em pelo menos 85 países, agora é a cepa dominante na Inglaterra e na Índia, onde surgiu pela primeira vez, e foi a causadora do surto no Sul da China no mês passado, que levou a uma resposta feroz das autoridades.
Muitos países antecipam uma longa batalha. Nesta segunda-feira, as autoridades chinesas anunciaram que planejam construir um centro de quarentena gigante em Guangzhou, com 5 mil quartos para acomodar viajantes internacionais. A Austrália também indicou que a cota reduzida para chegadas internacionais durará até o final do ano ou mais, dependendo da rapidez com que a vacinação em massa possa ser alcançada.
O país cometeu o erro de apostar praticamente todas as suas fichas em duas opções de vacina: a da AstraZeneca e uma proposta pela Universidade de Queensland, disse Richard Holden, economista da Escola de Negócios da Universidade de Nova Gales do Sul. A última falhou nas primeiras tentativas; a primeira caiu em um debate nacional sobre se o baixo risco de coagulação sanguínea deve impedir que seja usada por qualquer pessoa com menos de 60 anos.
Como resultado, o país está atrasado na obtenção das vacinas da Pfizer e Moderna e para dar prosseguimento ao planejamento e à promoção de sua campanha de vacinação. Cerca de 6,35 milhões de australianos receberam ao menos uma dose da vacina, o que representa menos de 25% da população do país, enquanto menos de 8% estão totalmente vacinados, segundo dados do Our World in Data.
O desafio dos próximos meses, para a Austrália e muitos outros países, envolve garantir que a grande maioria das pessoas seja vacinada. Quando isso acontecer, dizem os epidemiologistas, as mortes, não as infecções, devem se tornar a medida para a política de saúde.
— Antigamente, a Covid matava uma pessoa para cada 100 ou 200 casos — disse Peter Collignon, médico e microbiologista da Universidade Nacional Australiana. — Assim que você vacinar pessoas suficientes, torna-se 1 em mil.
Até o primeiro-ministro da Austrália, que demorou a assumir a responsabilidade pelos fracassos da vacinação em seu governo, reconheceu na sexta-feira que os australianos eventualmente precisariam parar de mirar na política de “Covid zero”.
— Nossa mentalidade sobre o manejo da Covid-19 deve mudar assim que você passar da pré-vacinação para a pós-vacinação — disse Morrison, acrescentando que o objetivo final é que “devemos tratá-la como se fosse uma gripe, e isso significa que não haverá quarentenas”.