Um escândalo sem precedentes atinge a saúde pública de Natal. Documentos obtidos pelo Agora RN — cópias do Livro de Ocorrências da Maternidade Dr. Leide Morais e de boletins operatórios — revelam que a empresa Justiz, contratada pelo Município em um acordo milionário, assumiu escalas de plantão sem dispor de corpo clínico obstétrico suficiente, recorrendo a jornadas extenuantes de um mesmo médico e até à participação de um residente de urologia em uma cesariana.
Os registros demonstram que o obstetra Dr. Ítalo esteve escalado por vários dias seguidos, figurando em turnos diurnos e noturnos ao longo de praticamente toda a semana. Em diversas páginas, o seu nome aparece repetido em manhã, tarde e noite, evidenciando plantões consecutivos e sobrecarga de trabalho, o que configura risco à segurança dos pacientes e sinaliza a ausência de outros profissionais para dividir a escala.

A gravidade aumenta com o boletim operatório de 06 de setembro de 2025, em que consta a realização de uma cesariana com Dr. Ítalo como cirurgião, Gabriel — identificado nos cadernos como residente de urologia — atuando como 1º auxiliar, e Dr. Alexandre responsável pela anestesia. Ou seja, em um procedimento obstétrico de alta complexidade, a Justiz colocou um residente de outra área para auxiliar no ato cirúrgico, prática que afronta o Conselho Federal de Medicina e desrespeita o edital de contratação, que exige corpo clínico habilitado e específico para a função.
A sequência de documentos entre os dias 1º e 7 de setembro de 2025 é clara: a escala de obstetras é curta, repetitiva e incompleta. Em várias anotações, o nome de Dr. Ítalo reaparece sem descanso adequado, e em um dos dias é registrado o apoio de Gabriel, explicitamente citado como residente de urologia, e não como obstetra. Na prática, isso expõe mães e bebês a riscos desnecessários e contraria frontalmente as normas da assistência obstétrica.
“Assinar contrato sem possuir corpo clínico não é apenas irregular: é ilegal, imoral e criminoso. A ausência de obstetras suficientes levou à sobrecarga de um único profissional e ao improviso de incluir residente de outra especialidade em cesariana, em flagrante descumprimento às regras do CFM e em total afronta às exigências do edital licitatório. A vida de mães e recém-nascidos foi exposta a condições inseguras, configurando um verdadeiro crime contra a maternidade, a infância e os direitos fundamentais da sociedade”, afirmou o presidente do Sindicato dos Médicos do Rio Grande do Norte, Dr. Geraldo Ferreira.
De acordo com Geraldo Ferreira, a conduta pode ser enquadrada inclusive no artigo 282 do Código Penal, que tipifica o exercício ilegal da medicina, e combinada com normas do Código de Ética Médica (Resolução CFM 2.217/2018), que veda expressamente ao médico exercer especialidade para a qual não possua título ou registro.
“Como a Justiz conseguiu assumir essa responsabilidade sem corpo clínico habilitado? Quem fiscalizou as escalas médicas? Em que condições legais e éticas um residente de urologia foi colocado como auxiliar em cirurgia obstétrica? E por que um mesmo médico aparece em plantões sucessivos, praticamente sem intervalo, durante quase toda a semana?”, questionou Dr. Geraldo Ferreira.
As provas estão nos próprios livros da unidade e no boletim cirúrgico oficial. É a comprovação documental de que a Justiz não cumpriu o contrato, assumiu funções sem ter profissionais para garanti-las e expôs pacientes a risco extremo. “A população de Natal merece explicações imediatas e providências urgentes das autoridades competentes”, concluiu Dr. Geraldo Ferreira.
Sindicato dos Médicos recebe denúncias diárias de escalas incompletas
O presidente do Sindicato dos Médicos do Rio Grande do Norte, Dr. Geraldo Ferreira, afirmou que a entidade recebe denúncias diárias de sobrecarga de plantões e de escalas incompletas nas unidades de saúde de Natal. Segundo ele, o problema não se restringe a casos isolados, como o da Maternidade Leide Morais, mas se repete em diferentes pontos da rede municipal.

Entre as denúncias, há relatos de médicos que chegam a cumprir cinco dias seguidos de plantão, como ocorreu na unidade de Mãe Luíza, e de profissionais que já trabalharam 36 horas ininterruptas na unidade de Cidade Satélite. Além da sobrecarga, o Sindicato tem recebido informações de residentes atuando como pediatras, em clara demonstração da falta de corpo clínico para atender a população.
“Isso configura uma situação de extrema gravidade”, disse Dr. Geraldo Ferreira. Para ele, a própria defesa do secretário de Saúde da capital revela a dimensão do problema. “Ao afirmar que a Secretaria está procurando médicos em todo o Nordeste e até em Santa Catarina, o secretário se torna um réu confesso. Não é papel da Secretaria sair em busca de médicos para suprir escalas de uma empresa contratada. Quando ele admite isso à imprensa, está reconhecendo publicamente a irregularidade”, completou o dirigente sindical.
Segundo o Sindicato, a combinação de plantões extenuantes, ausência de médicos em número suficiente e uso de profissionais em funções para as quais não possuem título ou registro cria um quadro de insegurança assistencial e expõe pacientes e trabalhadores da saúde a riscos cada vez maiores.