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"contornos"

Thaís Dias escreve sobre cinema, ancestralidade e o espelho político deixado por mulheres negras

Escritora potiguar reflete sobre Dona Laudelina, sua avó e as imagens que a fizeram se reconhecer
Thaís Dias
28/11/2025 | 09:12

no ano de 2019, a trama da minha vida era uma malha de dissemelhança entre a distorção do que eu era e a ilusão de uma imagem que eu sonhava ser. vivia num portal. nunca em canto algum. uma tela que fingia não existir enquanto se passa a história do tempo. fugaz demais para a realidade.

mesmo assim, vivendo na interface, foi quando escrevi sobre bacurau e o nordeste místico, que, em grande parte, me foi guardado um chão na sombra dentro da universidade federal, que era um sonho de concreto: eu parte daquela paisagem.

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A partir de um filme sobre Dona Laudelina, Thaís Dias revisita sua própria história e a das mulheres da sua família. Foto: Reprodução/Laudelina e a Felicidade Guerreira

mais uma vez, quando vi passar na tela gigante, esvoaçante no vento da praia, o primeiro curta da noite, pensei: como pode essa também ser a minha história? um olho não pode olhar a si mesmo, mas eu estou me vendo. o truque da superfície que projeta um corpo sobre o outro.

o filme passa lembrando em imagens e palavras a memória de laudelina de campos mello, trabalhadora doméstica e intelectual que ousou querer romper os ecos que a aprisionaram na condição de servidão. a primeira mulher a tornar coletiva e sindical a construção e a defesa dos direitos das trabalhadoras domésticas. um trabalho reprodutivo porque torna todos os outros possíveis.

gostaria que dona laudelina tivesse conhecido minha avó. elas se olhariam nos olhos, como um reflexo dessa história que articula o trabalho doméstico, a escravidão e as mulheres pretas. vó começou a trabalhar em casas de famílias quando tinha doze anos. ela costuma nos dizer: não tive infância. e eu penso: nem adolescência ou senescência. a carteira envelhecida e nunca assinada.

eu vim disso tudo. das minhas ancestrais, cuja existência e solidez me galgaram uma terra preparada. não pronta, mas fértil. por causa delas eu flori nos contornos de uma plantação regada a sangue e pó de ossos.

eu sou a colônia do trabalho delas, certa de que a minha decência e caráter são irretocáveis porque eu venho delas. desde quando eu ainda era desenhada dentro da minha mãe, que estava no ventre da mãe dela.

o filme sobre dona laudelina fez eu me olhar nos olhos. me reconhecer em mais esse lugar e compreender que nada retorna a vida que foi alienada da minha vó. mas ela, apesar de tudo, construiu suas afluentes e o reflexo disso é um fruto novo, subversivo e impensável. a minha germinação em busca de tudo que posso ser, abolida de inibições. dá um filme isso. nessa contradição há um bom lugar para sentar, a vista é bonita.

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Milena Manfredini, diretora do curta Laudelina e a Felicidade Guerreira, e Thaís Dias. Foto: Reprodução