Por trás da desordem causada pela pandemia do coronavírus no mercado de trabalho, tendências tanto na criação quanto na eliminação de vagas que já ganhavam contorno nos últimos anos se aceleraram.
Uma análise feita pela Folha no Cadastro Geral de Empregados e Desempregados (Caged) mostra que, entre as 25 ocupações mais qualificadas com os maiores saldos de postos criados entre janeiro e outubro deste ano, 12 também estavam na lista no mesmo período de 2019.
No caso das 25 profissões típicas de ensino superior que registraram mais vagas eliminadas (considerando a diferença entre admissões e demissões), 8 se repetiram nos dois anos.
Entre os casos positivos, se destacam profissões ligadas às áreas de saúde e tecnologia. Entre os negativos, a palavra “gerente” aparece em 6 dos 8 casos registrados.
Os dados do Caged, levantados pela plataforma Quero Bolsa a pedido da reportagem, indicam que mudanças estruturais explicam tanto a forte criação de vagas nos setores ligados à medicina e às novas tecnologias quanto a eliminação de cargos intermediários nas hierarquias das empresas.
Uma delas é a combinação entre o envelhecimento populacional e a maior preocupação dos brasileiros com seu bem-estar.
Embora a pandemia tenha acentuado a busca por profissionais da área de saúde, no caso de enfermeiros, fisioterapeutas e farmacêuticos, essa tendência precedeu a crise.
Essas três ocupações foram, respectivamente, a primeira, a terceira e a quarta —com perfil de ensino superior— que mais geraram vagas no país nos dez primeiros meses deste ano. Esse cálculo considera o saldo de postos criados, refletindo a diferença entre o total de contratações e desligamentos.
Psicólogos e biomédicos também estão entre as 25 ocupações que mais criaram postos de trabalho qualificados tanto em 2020 quanto em 2019.
A biomedicina —que une biologia e medicina e se dedica à pesquisa de doenças humanas— é um exemplo de área que ganha fôlego no país.
Dados da Rais (Relação Anual de Informações Sociais) mostram que o número de biomédicos atuando com carteira assinada no Brasil se multiplicou por 10 entre 2010 e 2019, saltando de 1.667 para 16.998.
“Há uma busca crescente do mercado por profissionais da área médica. Tendências como o cuidado com a saúde e o envelhecimento da população explicam esse movimento”, diz Janes Tomelin, pró-reitor de ensino a distância da Unicesumar.
O avanço tecnológico também tem ditado mudanças rápidas no universo laboral, que não apenas sobreviveram ao choque da pandemia como ganharam força nos últimos meses.
“No início da pandemia, a demanda do mercado se concentrou nas áreas de saúde e cadeias de logística”, diz Regina Botter, diretora de operações do site de vagas Catho.
“Mais recentemente, a busca por profissionais de tecnologia não só voltou como acelerou”, afirma a especialista.
Botter cita como exemplo o número de empregos anunciados na própria Catho neste ano para desenvolvedores de sites (“web developers” em inglês), que aumentou 182% em relação a 2019.
Cargos de analistas voltados a sistemas, ao estudo de dados e à pesquisa de mercado aparecem entre as ocupações de ensino superior com maiores saldos de vagas geradas tanto em 2020 quanto em 2019.
Disputados por empresas, esses profissionais têm sido admitidos por salários entre 18% e 25% maiores do que os pagos no mesmo período do ano passado.
Há casos de reajustes ainda mais expressivos: um engenheiro de aplicativos de computação era contratado, em média, por R$ 9.240 entre janeiro e outubro de 2019. Neste ano, o valor chegou a R$ 13.279, um aumento de quase 44%, segundo os dados do Caged, levantados pela plataforma Quero Bolsa.
São ganhos que superam em muito o aumento do custo de vida no país. Em outubro, a inflação anual, medida pelo IPCA, acumulada em 12 meses, era 3,92%. Em novembro, o índice ficou em 4,31%.
“As empresas estão em busca de profissionais que possam implementar ou aperfeiçoar seus processos de transformação digital”, afirma Cosmo Donato, economista da consultoria LCA.
Segundo Botter, os recrutadores que usam a plataforma da Catho apostam que as mudanças iniciadas na pandemia, como o uso intenso do trabalho remoto, vieram para ficar.
“As plataformas e as ferramentas digitais continuarão sendo desenvolvidas e incrementadas, sustentando a demanda por profissionais capacitados para isso”, afirma a especialista.
O comércio eletrônico, que também foi impulsionado pelo distanciamento social imposto pela crise sanitária, tem sido outra fonte de demanda não apenas por trabalhadores com perfil de desenvolvimento de ferramentas digitais mas também de pesquisa de mercado nessa área.
“As empresas querem entender o comportamento de seus usuários, e os robôs não dão conta dessa parte de inteligência sozinhos. Há a necessidade de interpretar os dados e planejar novos passos a partir deles”, diz Tomelin.
Se, por um lado, a tecnologia abre espaço para o crescimento de certas ocupações —e até o surgimento de novas—, por outro, explica a eliminação de vagas intermediárias, de gestão e administração, dentro das empresas. Essa tendência tem sido chamada por alguns especialistas de “desaparecimento do meio”.
Por isso, tantos postos de gerentes —de agências bancárias, administrativos, financeiros— vêm registrando mais demissões do que contratações nos últimos anos.
As tendências por trás das movimentações trabalhistas em cargos mais típicos de formação universitária também influenciam o fluxo de contratações e demissões de profissionais menos qualificados.
Postos na área de saúde (como técnico em enfermagem) e logística (como armazenista) estão entre os que registraram saldos elevados de admissões no país nos últimos dois anos. Também tem ocorrido o aumento de demanda por mão de obra no setor agrícola.
Já entre as profissões menos sofisticadas, que amargam mais demissões do que contratações, estão aquelas em que a automação e a inteligência artificial substituem o trabalho humano. São os casos de supervisores administrativos, cobradores e operadores de caixas.
Segundo os especialistas ouvidos pela Folha, o investimento em qualificação profissional pode evitar que trabalhadores deslocados de suas carreiras fiquem de fora do mercado.
“Embora esse deslocamento de profissionais para serviços, como o Uber, seja muito associado à precarização, nem sempre isso ocorre”, afirma Donato.
“As novas tecnologias têm aberto espaço para que muitos profissionais, que se tornaram autônomos, vendam seu trabalho diretamente ao consumidor final”, afirma o economista.
Ele cita como exemplo os restaurantes virtuais —conhecidos em inglês como “dark kitchens”— que não têm sede física e chegam aos clientes por meio dos aplicativos.
Segundo Tomelin, as rápidas mudanças no mercado têm exigido uma grande reformulação do lado da oferta de qualificação profissional.
No caso da UniCesumar, já existem, por exemplo, carreiras específicas de analista de desenvolvimento de sistemas e de analista de comportamento. “São novas carreiras que combinam elementos de várias outras graduações tradicionais”, diz o vice-reitor da universidade.
“Essas mudanças têm forçado uma aproximação entre as universidades e o mercado de trabalho, o que é positivo, pois por muito tempo os dois estiveram apartados no Brasil”, afirma Tomelin.
Donato ressalta que, de forma geral, embora as admissões no mercado formal tenham se recuperado nos últimos meses, 2021 será um ano de muita incerteza, em que o desemprego tende a aumentar.
Com o fim do prazo de estabilidade garantida a trabalhadores do mercado formal pelas empresas que aderiram ao programa de proteção ao emprego, a tendência é que haja um aumento das demissões no próximo ano.