Em 2011, uma participação estrelada no sucesso francês Intocáveis levou Omar Sy a um prêmio César de melhor ator e uma carreira em Hollywood, com papéis em X-Men: Dias de um Futuro Esquecido e Jurassic World.
Esse sucesso fez de Sy – que nasceu nos arredores de Paris de pais imigrantes da África Ocidental – o tipo de estrela a quem uma produtora poderosa como a Gaumont pergunta quais são os papéis de seus sonhos.
“Se eu fosse britânico, teria dito James Bond, mas, como sou francês, disse Lupin”, disse Sy em uma chamada de vídeo recente, em francês, de sua casa em Los Angeles. “Ele é brincalhão, ele é esperto, ele rouba, ele está sempre rodeado de mulheres. Além disso, é um personagem que interpreta personagens. Para um ator, é o melhor”.
Alguns anos depois dessa conversa com a Gaumont, estreou na Netflix uma temporada com cinco episódios da nova série francesa de Sy, Lupin. Menos de uma semana depois, a série, uma correria estilosa ambientada no coração de Paris, virou o segundo título mais popular do serviço de streaming nos EUA, a primeira vez que uma série francesa estreou no Top 10, de acordo com a Netflix. Uma segunda temporada já foi filmada e está prevista para chegar ainda este ano.
Mas há uma reviravolta na história: Arsène Lupin não é um personagem da série que leva seu nome – pelo menos não um personagem de carne e osso. Mas agora muitos leitores devem estar se perguntando: “Espera aí, Lup-quem?”.
Criada pelo escritor francês Maurice Leblanc em 1905, Arsène Lupin é um nobre integrante da gangue de bandidos encantadores conhecidos como ladrões cavalheiros. Assim como Thomas Crown, Danny Ocean, Simon Templar e (para incluir uma dama) Selina Kyle, Lupin é elegante e eficiente. Ele prefere disfarce e persuasão à violência e é tão arrojado que suas vítimas quase lhe agradecem a honra de serem roubadas.
Herói de muitos contos e romances, Lupin foi visto pela primeira vez como a resposta francesa a um certo detetive britânico; Leblanc chegou a atrevidamente escrever histórias crossover não autorizadas estrelando um tal de Herlock Sholmès. Só a França produziu vários filmes e adaptações para a TV sobre o ladrão. Uma geração inteira ainda canta a música tema da série que foi veiculada em 1971-74. Em 2004, surgiu um filme estrelado por Romain Duris.
Sy, 42 anos, não interpreta Lupin, mas um afável parisiense chamado Assane Diop, filho de um imigrante senegalês que idolatra o ladrão fictício. Sy, que também é creditado como produtor artístico, admitiu que, na primeira vez em que propôs um projeto baseado em Lupin, ele estava mais familiarizado com a reputação do personagem.
“Honestamente, era só uma coisa que você conhece, era parte da cultura”, disse ele. “Depois liguei os pontos entre os livros, os programas de TV que via quando era criança e alguns mangás. Fiquei totalmente viciado em Lupin”.
George Kay (Criminal), criador e showrunner britânico da série, disse num vídeo chat que, quando foi chamado, estava mais familiarizado com outras criações da cultura pop da virada do século 20, como Sherlock Holmes, Scarlet Pimpernel ou A.J. Raffles.
“Mas quando me disseram que a Netflix queria fazer a série com o Omar Sy, que ele estava no projeto, a combinação dessas duas coisas deixou tudo muito interessante para mim”, disse Kay. “Porque eu amo muitas coisas do Lupin: os truques, as trapaças”.
O cineasta francês Louis Leterrier (Carga Explosiva, O Cristal Encantado: A Era da Resistência), que dirigiu os três primeiros episódios de Lupin, foi um dos primeiros membros da equipe criativa, antes de a ideia ser levada à Netflix. (A série foi produzida pela Gaumont para a Netflix). Ele disse que demorou um pouco para definir um conceito.
“Nosso primeiro passo era descobrir para onde queríamos ir”, disse Leterrier numa chamada de vídeo. “Omar vai de fato interpretar Lupin? É contemporâneo ou clássico?”.
No final das contas, “George Kay veio com uma ideia que todos adoramos”, acrescentou. “Queríamos ver Omar em toda a sua humanidade e experiência com o mito, em vez de simplesmente chamá-lo de Arsène Lupin e fazer uma coisa que já tinha sido feita”.
Quando encontramos o Assane de Sy, ele está obcecado em vingar seu pai viúvo (Fargass Assandé), que morreu 25 anos antes. O velho Diop, que trabalhara duro para dar ao filho as ferramentas de que ele precisava para ter sucesso na sociedade francesa (começando pela importância de conhecer bem a gramática), suicidou-se na prisão após ser acusado de roubo, deixando órfão o jovem Assane. O bem mais precioso de Assane se tornou um livro de Lupin que seu pai lhe dera de presente – um presente que moldaria sua vida inteira. (A série tem o subtítulo À sombra de Arsène).
Assim como o larápio de Leblanc, o Assane adulto rouba e se livra de confusões graças a seu bico doce e seu talento para mudar de figura. Mas não espere nenhuma máscara hiper-realista de látex à la Missão: Impossível – Assane é decididamente avesso à tecnologia, algo condizente com a tendência da série, deliberadamente antiquada.
“Lupin era um observador atento da sociedade e queríamos que Assane fosse igual”, disse Sy. “Ele não precisa de muito para se disfarçar: ele se mistura ao tipo de pessoa que não chama atenção e desaparece”.
Quando Assane sai para roubar um colar fortemente guardado no Louvre, por exemplo, ele alterna entre se disfarçar de zelador e se passar por um rico amante da arte que vai a um leilão. No primeiro caso, ele se torna invisível, um homem negro entre tantos outros; no segundo, ele explora o fato de se destacar num mar de rostos brancos, ressaltando seus traços.
“Gostei muito do aspecto ‘ladrão cavalheiro’, mas queria subvertê-lo e lhe dar um ângulo social”, disse Leterrier. “Achei interessante a ideia de um homem negro de um metro e noventa de altura se esgueirando tanto na alta sociedade quanto no submundo”.
Kay aproveitou a oportunidade para soltar algumas declarações de passagem. “É muito importante ter um protagonista franco-africano”, disse ele. “Os alvos do personagem são o establishment francês, e estamos encenando esses dramas nos cenários parisienses mais clássicos”.
Na verdade, Assane está muito ciente de como a sociedade francesa tradicional o enxerga e costuma usar esses preconceitos para enganar suas vítimas. A série também tenta passar uma mensagem astuta para ter os fãs mais dedicados dos livros Lupin de ascendência africana e norte-africana, ou birracial.
Para Sy, “a ideia é dar uma nova cara ao que significa ser francês hoje”, disse ele. “O arquétipo mudou”.